À volta do Tricot

Na casa onde nasci e cresci, sempre vi a minha mãe e a minha avó Maria dedicarem-se a várias artes manuais. A minha mãe preferia o Tricot e o Ponto Cruz, já a minha avó gostava de costurar, bordar e fazer Croché.


Eram tempos muito diferentes, com hábitos de consumo também muito diferentes dos de hoje.

Nem duas décadas haviam passado sobre o final da II Guerra Mundial, durante a qual até os produtos alimentares mais essenciais não estavam disponíveis, ainda que se dispusesse de dinheiro para os comprar. Havia senhas de racionamento e era necessário esperar horas em longas filas para se conseguir um pouco de manteiga ou de farinha.

O vestuário era confecionado por modistas e, na maioria das vezes pelas próprias pessoas, que desenvolviam esse conhecimento, pela necessidade não gastar recursos, que eram escassos até para a compra dos fios e dos tecidos e havia pouca variedade disponível, comparativamente com os dias de hoje. A minha mãe conta-me que só tinha dois vestidos novos por ano, para usar nos fins de semana.

Nos dias de semana usava os vestidos do ano anterior e assim sucessivamente. E havia quem nem isso tivesse. As roupas eram remendadas, acrescentadas, passajadas.
Nessa época havia essa cultura, de poupar, reaproveitar, nada era desperdiçado. Lembro-me que, de qualquer restinho de pano a minha avó fazia uma obra de arte.

O tempo gasto a produzir essas peças não era o mais valorizado, mas sim os recursos que eram escassos. E o mesmo se passava em muitas casas, em muitas famílias.

Quem não tinha uma camisola feita pela avó, pela mãe, por uma tia… E essas várias técnicas iam passando de geração em geração e assim perduravam, até que deixou de ser moda. Aquilo que até aí constituia uma virtude, passou a ser uma atividade menor e a sua prática frequentemente associada a pessoas com baixa capacidade intelectual e elevada idade, para além de ser conotado com baixo poder económico.
Lembro-me de, eu e as minhas amigas, nem sequer confessarmos que fazíamos Tricot, para não sermos ridicularizadas e obtermos o invariável comentário “Mas isso é coisa de velhas”.

E assim se foram perdendo estes hábitos e essa tradição deixou de ser passada de mães para filhas, havia-se quebrado a cadeia.
Começamos a entrar da era do “compra, usa e deita fora”. Com o aparecimento do pronto-a-vestir, as mais variadas peças de vestuário passaram a estar disponíves e de fácil acesso.
E o Tricot passou de moda.

Para quê passar horas a fazer uma camisola, se bastava ir à loja e escolher a que fosse mais do nosso agrado? Vestir, experimentar várias e escolher a nossa preferida, sem ter que estar à espera de ver se a camisola resultante do nosso trabalho de Tricot, seria ou não do nosso agrado depois de vestida.

Mas a vida vai correndo, depois de uma época vem outra e as memórias ressurgem sempre. As modas vão e voltam. E as pessoas voltaram a lembrar-se das camisolas que as suas mães, avós ou tias faziam. E voltaram a querer aprender. Mas com quem?

A mãe não tinha querido aprender e a avó, infelizmente já cá não está para poder ensinar.

Então começaram a surgir as mais variadas formas de aprender, desde os Workshops aos Cursos de Tricot. E a moda voltou. As pessoas voltam a ter vontade de ter aquelas camisolas fofinhas, confortáveis e lindas que só o Tricot Manual pode criar.

No entanto, e apesar disso, quem se dedica a produzir aquilo que podem ser verdadeiras obras de arte, não consegue facilmente comercializá-las, uma vez que sistematicamete se tem a expectativa que elas tenham o mesmo valor que uma peça produzida industrialmente. E não há comparação possível.

De que se faz uma camisola tricotada?
Faz-se de dedicação, do tempo utilizado a fazê-la.

Dos pensamentos em que vagueamos enquanto a tricotamos. Quantas vezes visto uma camisola tricotada por mim e relembro do contexto no qual vivia nessa época, as minhas preocupações e anseios… até dos sons e dos cheiros desses momentos.
Faz-se também de liberdade. De podermos ter mil fontes de inspiração mas a liberdade de fazer as nossas escolhas. Pois é, vi numa montra uma camisola que até me agradou.

Entrei na loja e experimentei: não gostei do toque da lã, nem do comprimento, nem das cores disponíveis.

Então, até onde vai a minha liberdade?

Até à escolha da composição do meu fio preferido, das cores, das agulhas com que a vou tricotar. Mais grossas ou mais finas, para a malha ficar mais fluida ou mais estruturada. Da largura, do comprimento, dos pontos, dos pormenores…
Uma camisola faz-se de criatividade sem limites, de exclusividade.

Se quisermos, a nossa camisola pode ser diferente de qualquer outra. Pela forma, pelos pontos escolhidos, pela combinação de cores.
Agora vamos pensar apenas no fio.

Que antes de começarmos é apenas um fio, quase bidimensional. Mas que se vai enrolando nas agulhas. Primeiro na montagem das malhas e depois enquanto vai crescendo, numa estrutura mais ou menos complexa, até se criar uma das partes de uma camisola, depois mais outra e mais outra.
Tudo isto apenas com um fio. É quase mágico como apenas um fio se pode tornar numa peça que nós podemos vestir.
Agora falemos de nós. Da volta que a vida deu.

Do consumo excessivo que deu origem ao desperdício de recursos, ao excesso de lixo e à necessidade de fazermos escolhas que promovam a sustentabilidade das nossas vidas.
E é aqui que o Tricot está de volta. Uma camisola feita com um fio de qualidade dura-nos décadas, sempre em bom estado.
O Tricot está de volta, brindemos à volta do tricot.


Demos valor às voltas de que o Tricot é feito e falemos à volta dele o suficiente para o conhecer na sua essência.
Para conhecermos os benefícios da sua prática, para conhecermos o benefício de usarmos uma camisola de tricot.

Manuela Carrondo

Artigo Publicado em Blog de Mulheres à obra: https://www.mulheresaobra.pt/o-regresso-do-tricot-por-um-consumo-sustentavel/

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